Humor matinal

minha cabeça está zunindo
como um enxame de mariposas alvoroçadas
pela claridade que invade (à revelia)
a escuridão do meu quarto
revelando ao meu lado
a cama vazia
que me encara com desdém
como quem tenta despertar alguma dor (despertador)
mas só consegue me deixar mais puta
viro pro lado e invento uma desculpa
para o dia não raiar
pelo menos até o meio-dia
ou até o telefone tocar
ou o carteiro chegar
ou a fome bater
ou qualquer coisa que me faça querer matar
ao invés de morrer

Maresia

Eu gosto do gosto de sal que fica na boca depois de um banho de mar e do estremecimento que dá quando o vento bate no cabelo molhado. É como o eco de um beijo uma vez roubado. Como o sopro suave de uma respiração em meu ouvido, indo e vindo como as ondas que vêm e vão e (não em vão) trazem consigo o hálito fresco da maré.

Minha sina é sentir saudade do gosto do cheiro da cor do som do toque de tudo que uma dia eu já senti. Meu corpo guarda o calor do sol que queima marcas tatuadas em brasa. E mesmo quando eu troco a pele, o pelo guarda a lembrança do arrepio.

Flor do deserto

a flor da pele também desabrocha
e brota
mesmo no campo mais seco
regado ao suor dos (es)poros
que estuporam sob o sol de rachar

pétala por pétala
revela sua beleza tímida
como um botão no peito comprimido
que sangra até murchar
em um orgasmo interrompido

Insônia

Presa dentro dos meus olhos como um cisco
Vejo meu reflexo se mover como se fosse eu
Eu sou apenas um fantasma e ninguém entende minha língua
Mas não há tempo para sentimentalismo
O que eu sinto ou até mesmo o que você sente não é importante
Afinal, a vida é muito curta
e não se chega a lugar nenhum arrastando sonhos ou cicatrizes em papéis rasgados
Ninguém pode desenhar estrelas nas palmas das minhas mãos trêmulas
E ninguém pode escutar o meu grito
Exilado nesse silêncio faminto que é a noite

Nunca é tempo

É tarde. Os sonhos já adormeceram
em mim, as luzes se apagaram
no céu, as estrelas estão mudas

Eu sei, é tarde
a estação está vazia
agora, e a goteira sobre a pia
pinga uma lágrima a mais

Mas é tarde
e esta noite não tem lua
nua, nem você cheia de dedos
para me apontar que

Sim, é tarde demais para mentir
mesmo que seja verdade
que tenho saudade de quando era cedo
demais.

Profano

Era ali, o paraíso amortecido & amordaçado onde os anjos gozam Amém. Meus olhos – como um caleidoscópio – encarnavam milhões de olhares em um só, e eu via através de cada alma o pecado escarnecido e escondido detrás da devoção fingida que lhes encobria o verdadeiro propósito de viver à sombra da absolvição. Seu Deus todo piedoso perdoar-lhes-ia as falhas porquanto estivessem arrependidos
(Eu não vim chamar justos, mas pecadores, ao arrependimento - Lucas 5:32) 
 Ah, e estavam todos sempre tão arrependidos! Envergonhados de suas traições à bondade do Pai, depois de terem escarrado Seu nome nas sarjetas e reduzido Seu sangue sagrado a urina, os fieis curvam-se ao altar e rogam por benevolência - não importa seus dedos ainda tragam o cheiro obsceno do sexo que lhes rega o corpo. Em seguida, embalados no bálsamo dos sinos, dormem em suas camas imundas o sono dos justos. Quanto a mim? Eu permaneço insone, remoendo o pesadelo vil ao qual fui cruelmente introduzida. Não me restava ilusões acerca da perversidade humana, pois senti na pele – e mais além – a sua rijeza; mas minhas suspeitas quanto à benignidade de Deus atormentavam meu espírito. Eu sabia, deveria aceitar os desígnios Dele
(não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos – Jeremias 10:03)
 mas precisava da anunciação pelos lábios manchados de dor & sangue de um Jesus do qual pudesse tocar e sentir o gosto de verdade, para prosseguir. Eu precisava de respostas concretas para as minhas perguntas que eram tantas e tão famintas que se alimentavam do meu disparate, adubando minha mente para o ceticismo – outrora maciçamente combatido - criar raízes. Sentada solitária no último banco da igreja, minha presença era imperceptível, mas minha aparência franzina e macilenta ofendia os santos que me olhavam do teto. Decerto que ouviam meus pensamentos ultrajantes e sabiam da minha heresia jamais pronunciada,
(Vigiai, estai firmes na fé; portai-vos varonilmente, e sede fortes - I Coríntios, 16:30)
 haja vista as paredes repletas de pinturas e de bocas me imputarem ingratidão & covardia aos brados. Eu senti o remorso atravessar meu corpo (como podia acusar de injusto o meu Senhor?), também - e novamente - a raiva (como podia não fazê-lo?). Duelei em silêncio. Eu contra os santos, contra os anjos, contra mim – contra Deus? Se perdi a batalha, não lembro, mas um soluço irrompeu na mudez. Era meu pranto que ecoava agora. E minhas mãos – de tão pequenas – mal podiam esconder minha vergonha.