6.13.2012

Post Mortem


Eu tentei (juro que eu tentei) me segurar na borda daquele abismo, mas a vertigem que se apoderou de mim não era medo de cair – era vontade de pular. Fechei os olhos e, por um instante, pude ver nitidamente uma forte claridade, até que o mundo encarvoou-se de trevas e silêncio.

Eu sentia a escuridão pegajosa mover-se em torno de mim como tentáculos invisíveis. Tentei gritar, mas ouvi meu eco morrer alguns passos adiante, engolido pelas sombras. Nada parecia poder viver naquele lugar, e nesse momento me ocorreu que eu também já não vivia.

De pés descalços, caminhei pisando em pedras – que mais tarde descobri serem crânios. Elas se espatifavam como frutas podres, dilacerando-me a carne, fazendo verter meu sangue negro e profano, fedorento como cadáver em decomposição.

Tropecei nas raízes de uma árvore caída e seus galhos secos envolveram meus pés, arrastando-me pelo chão de ossos amolados. Desesperado, cravei as unhas na terra, mas elas não suportaram a força do rebento e estouraram todas em uma dor lancinante.

Eu chorava como uma criança que acorda assustada com um pesadelo, exceto porque eu jamais acordaria (quisera ao menos poder dormir). Meu corpo inteiro latejava e tremia com um frio causticante, fazendo meus dentes chacoalharem dentro da minha boca, até que eu os vomitei um a um sobre minhas mãos e pés ensanguentados.

Depois de um tempo, não sei dizer quanto, o mundo como ele é não passava de uma lembrança distante. Tudo que existia era dor e sofrimento, em um cemitério de almas atormentadas, onde nem mesmo à morte eu podia recorrer – como tantas vezes fiz. Eu estava morto. Mas se a morte não era o fim, aonde mais eu poderia ir?

6.09.2012

Tormenta

Lágrimas caem feito pétalas no outono
Meus olhos desbotam, com o monótono gotejar
Triste canção que me afasta o sono
- ao invés de acalentar

Olho a janela, as luzes se movem
As nuvens do céu se dissolvem no mar
Sonho acordada que sou tempestade
Mas nunca aprendi a trovejar

Cravo as unhas sobre a face
Meu disfarce já vai se desmanchar
Mancho os lençóis com meu sangue vermelho
Vejo o espelho me denunciar

O arco que atravessa a íris
Um raio me rouba o ar
Arrepios febris sacodem meu corpo
Que parece evaporar

Minha alma se transmuta
Mas o penar nunca se esgota
Sou tempestade em conta-gotas
Trovão de uma garganta muda



5.10.2012

Estiagem

Se eu chorar todas as lágrimas que tenho
Serei como um rio que secou?
Um deserto de sal
Um aquário vazio
Um buraco no meio do caminho

5.09.2012

Um trago de amor


A mesa estava posta. A sala, vazia. Exceto pela mulher que, com um cigarro preso entre os dedos, observava a lenha crepitando na lareira. Travavam uma guerra silenciosa, o cigarro e a madeira, para ver quem primeiro viraria cinzas. Mas ela própria já havia vencido aquela disputa.

O cenário era melancólico. As chamas projetavam na parede a sombra daquele fantasma amargo, que parecia aguardar resignadamente o dia do juízo final. E aguardava mesmo, embora esse dia estivesse distante.

Aquela noite ela esperava seu futuro marido. Ela não o conhecia ainda, mas estava escrito que seria assim. Ao contrário de sua irmã mais jovem, que deveria ser feliz apenas ao lado de um homem que de fato a merecesse, ela precisava zelar pela família.

Tentava consolar-se. Afinal de contas, o homem era rico. Poderia cobrir-se de joias e perfumes caros. Mandaria coser vestidos de seda pura e moraria em uma verdadeira mansão, repleta de criados que fariam todas as suas vontades.

Um arremedo de sorriso surgia em sua face. Amargo também. Parecia que adivinhava que não seria esse seu destino, e, ainda que fosse, talvez ela não fosse tão superficial quanto julgavam.

Voltou o olhar a porta. Um tiquetaquear incômodo a inquietava, parecia avisar a todo momento que ninguém viria. E se viesse e não gostasse dela? Se não viesse, era sinal que sua reputação fora suficiente para assustá-lo. De todo modo, ela saía perdendo.

Levantou-se do sofá, impaciente. Foi olhar-se num espelho. Havia duas dela. Uma tão imóvel quanto uma fotografia, presa dentro do espelho na mais completa resignação; e outra igualmente imóvel, mas tão agitada quanto as sombras nervosas que se levantavam contra a luz. Apesar disso, achou-se bonita. Apesar dos cabelos pretos e dos olhos também pretos. Apesar de não parecer, em nada, com aquela que parecia ser a personificação da beleza.

Do lado de fora da casa, o assoalho rangeu. Alguém vinha, pensou, e batidas na porta confirmaram suas suspeitas. O coração falhou uma batida. As mãos nos cabelos repararam o penteado sofisticado.

Abriu a porta com o sorriso que havia ensaiado. Entretanto, ele logo esmaeceu.

— Ah, é você.

O desprezo em sua voz, ao reconhecer o rapaz parado à soleira. Deu-lhe as costas, retornando à sala, mas a porta permaneceu aberta em um convite silencioso.

Parecia que não, mas suas pupilas enigmáticas vigiavam-no pelo reflexo do espelho. Costumava fingir que não sabia seu nome e frequentemente se referia a ele como “garoto estranho”. Tinha que admitir, contudo, que há algum tempo sua impressão sobre ele havia mudado.

Ele já não era o moleque pálido e magro, meio desconjuntado, do qual se recordava. Tornara-se um rapaz atraente, de ombros largos e traços marcantes – exceto, talvez, por aqueles cabelos terrivelmente desalinhados. Naturalmente, deveria amadurecer ainda antes de tornar-se um homem de fato. Ganharia alguns centímetros, engrossaria os pelos do rosto. Entretanto, já naquela época seus olhos detinham um brilho trágico, que sugeria um peso maior do que alguém tão jovem deveria carregar.  Eles não eram tão diferentes afinal. 

— O que faz aqui?

Aproximou-se, muito mais do que era necessário, apenas para soprar a fumaça em seu rosto.

— Vim pedir que fuja comigo.
— Fugir? – ela pareceu se divertir – Não seja tolo garoto.
— Eu posso cuidar de você. 
— Oh, cuidar da sua mãe o tornou perito em mulheres?
— Eu sei tratar uma mulher.
— Eu não sou uma mulher qualquer.

Por um instante, a observação provocou um pesado silêncio, mas o garoto não desistiria tão fácil.

— Deixe que eu prove o meu amor e verá.
— Amor? É com isso que pretende me conquistar? Seu amor não é mais real que qualquer outro sonho, garoto. Acorde enquanto há tempo.
— Não. É você quem está sonhando. Está presa em um pesadelo, não vê? Deixe-me acordá-la...
— Com um beijo de amor eterno? Ora, não me faça rir.
— Ria se é o que deseja.

Ela tentou escapar da onda de excitação que envolveu seu corpo naquele momento, porém um pulso sólido a susteve. Como um pássaro indefeso que se choca acidentalmente contra uma janela, ela se chocou contra o peito forte do jovem, mas suas asas há muito haviam se partido.

Permaneceu sem reação, com a cabeça inclinada sob a pressão do beijo inesperado, até que o calor daquela boca penetrou-a, provocando um súbito estremecimento. Ela sentiu-lhe os lábios, macios, frescos na cálida aspereza de uma barba recente, tomando os seus. Então suas mãos se crisparam sobre os ombros do homem. Sim, deu-se conta de que ele já era um homem, afinal, e amava com uma paixão arrebatadora, a qual ela se entregou febril.

— Vá.

Disse quando ele se afastou.

— Mas...
— Vá.

Quando a porta se fechou, um riso espontâneo e estranhamente sensual escapou de sua garganta, como se tivesse, de repente, recuperado a juventude perdida em anos de amargura. Havia provado do fruto proibido, polpa saborosa oferecida à fome, pelo qual seria um milhão de vezes expulsa do paraíso (a cada despudorada lembrança), e agora estava pronta para enfrentar seu destino.

4.10.2012

Sossego


Não tenha pressa, querida
Eu não vou a lugar nenhum
Vou te esperar no fim do dia
Te preparar um café
Quando a noite estiver fria, vou te abraçar
E você pode se deitar no meu peito quando precisar chorar
Vou beijar seus olhos ao amanhecer
E sua boca, não importa o mau hálito
Vou emaranhar seus cabelos com meus dedos
Habitar seu ventre pálido (entre lençóis)
E deixar o sol arder em nós
Como um velho hábito

1.04.2012

Como conquistar uma mulher


Deixa-me em transe
Trava-me a língua
Tira-me o sono e sonha comigo
Censura meu bom senso
Advinha o que eu penso
Diga ser meu
E depois suma

Liga-me tarde da noite
Com uma voz rouca e polida
Fala pela metade
Que minha vontade duplica
Coma-me pelas bordas
Para não queimar a língua
Caça minhas palavras
Liga os pontos e desliga