11.05.2013

Profano

Era ali, o paraíso amortecido & amordaçado onde os anjos gozam Amém. Meus olhos – como um caleidoscópio – encarnavam milhões de olhares em um só, e eu via através de cada alma o pecado escarnecido e escondido detrás da devoção fingida que lhes encobria o verdadeiro propósito de viver à sombra da absolvição. Seu Deus todo piedoso perdoar-lhes-ia as falhas porquanto estivessem arrependidos
(Eu não vim chamar justos, mas pecadores, ao arrependimento - Lucas 5:32) 
 Ah, e estavam todos sempre tão arrependidos! Envergonhados de suas traições à bondade do Pai, depois de terem escarrado Seu nome nas sarjetas e reduzido Seu sangue sagrado a urina, os fieis curvam-se ao altar e rogam por benevolência - não importa seus dedos ainda tragam o cheiro obsceno do sexo que lhes rega o corpo. Em seguida, embalados no bálsamo dos sinos, dormem em suas camas imundas o sono dos justos. Quanto a mim? Eu permaneço insone, remoendo o pesadelo vil ao qual fui cruelmente introduzida. Não me restava ilusões acerca da perversidade humana, pois senti na pele – e mais além – a sua rijeza; mas minhas suspeitas quanto à benignidade de Deus atormentavam meu espírito. Eu sabia, deveria aceitar os desígnios Dele
(não cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos – Jeremias 10:03)
 mas precisava da anunciação pelos lábios manchados de dor & sangue de um Jesus do qual pudesse tocar e sentir o gosto de verdade, para prosseguir. Eu precisava de respostas concretas para as minhas perguntas que eram tantas e tão famintas que se alimentavam do meu disparate, adubando minha mente para o ceticismo – outrora maciçamente combatido - criar raízes. Sentada solitária no último banco da igreja, minha presença era imperceptível, mas minha aparência franzina e macilenta ofendia os santos que me olhavam do teto. Decerto que ouviam meus pensamentos ultrajantes e sabiam da minha heresia jamais pronunciada,
(Vigiai, estai firmes na fé; portai-vos varonilmente, e sede fortes - I Coríntios, 16:30)
 haja vista as paredes repletas de pinturas e de bocas me imputarem ingratidão & covardia aos brados. Eu senti o remorso atravessar meu corpo (como podia acusar de injusto o meu Senhor?), também - e novamente - a raiva (como podia não fazê-lo?). Duelei em silêncio. Eu contra os santos, contra os anjos, contra mim – contra Deus? Se perdi a batalha, não lembro, mas um soluço irrompeu na mudez. Era meu pranto que ecoava agora. E minhas mãos – de tão pequenas – mal podiam esconder minha vergonha.

Espectro

Era noite, bem noite, eu podia sentir os vermes do esgoto farejando minha alma podre. Seu lugar é aqui conosco! É o que eles diriam se pudessem falar, ou se – pelo menos – eu pudesse ouvi-los. Mas a verdade é que, de alguma forma, eu os entendia. Viviam na sarjeta por que o mundo, mesmo com toda imundice, era limpo demais para eles. E era perigoso andar por aí, correndo o risco de ser depurado por uma manhã qualquer de verão. Afinal, já não restaria nada menos corrompido em suas almas corroídas pela mágoa e pelo rancor, nada que pudesse ser visto à luz do dia sem que se cegasse uma legião de outros seres mais nobres.

Era por isso que eu andava a noite. A noite era minha casa, minha amante e meu ópio. Meu verdadeiro amor, este já nasceu corrompido, e morreu antes mesmo de vingar.  Foi quando eu enterrava seus ossos – naquela cidade de túmulos – que a noite me seduziu. A lua, você sabe, é uma farsa tão grande quanto eu. Com sua luz emprestada, engana a lobos e homens, mas não pode me desmascarar sem sofrer a mesma ameaça. Como dizem, à noite todos os gatos são pardos.

Eu poderia ter escolhido viver meu destino de trevas (on the dark side of the moon). Entretanto, deferente de ratos e baratas – que  nascem livres – o homem nasce condenado. É a maldição do pensamento, meu amigo, a pena perpétua dos fracassados. É nele que se manifestam a culpa, o medo, a raiva por sentir culpa e medo, e todos os outros sentimentos mais patéticos. E este sou eu. Embora mais cáustico e endurecido, sempre solitário.

Ainda aquela noite – antes que os pássaros acordassem – eu estaria misturado aos outros da minha espécie, mas meu segredo estava seguro. Minha alma - digo, meus olhos são negros demais para se ver através.