Era noite, bem noite, eu podia sentir os vermes do esgoto farejando minha alma podre. Seu lugar é aqui conosco! É o que eles diriam se pudessem falar, ou se – pelo menos – eu pudesse ouvi-los. Mas a verdade é que, de alguma forma, eu os entendia. Viviam na sarjeta por que o mundo, mesmo com toda imundice, era limpo demais para eles. E era perigoso andar por aí, correndo o risco de ser depurado por uma manhã qualquer de verão. Afinal, já não restaria nada menos corrompido em suas almas corroídas pela mágoa e pelo rancor, nada que pudesse ser visto à luz do dia sem que se cegasse uma legião de outros seres mais nobres.
Era por isso que eu andava a noite. A noite era minha casa, minha amante e meu ópio. Meu verdadeiro amor, este já nasceu corrompido, e morreu antes mesmo de vingar. Foi quando eu enterrava seus ossos – naquela cidade de túmulos – que a noite me seduziu. A lua, você sabe, é uma farsa tão grande quanto eu. Com sua luz emprestada, engana a lobos e homens, mas não pode me desmascarar sem sofrer a mesma ameaça. Como dizem, à noite todos os gatos são pardos.
Eu poderia ter escolhido viver meu destino de trevas (on the dark side of the moon). Entretanto, deferente de ratos e baratas – que nascem livres – o homem nasce condenado. É a maldição do pensamento, meu amigo, a pena perpétua dos fracassados. É nele que se manifestam a culpa, o medo, a raiva por sentir culpa e medo, e todos os outros sentimentos mais patéticos. E este sou eu. Embora mais cáustico e endurecido, sempre solitário.
Ainda aquela noite – antes que os pássaros acordassem – eu estaria misturado aos outros da minha espécie, mas meu segredo estava seguro. Minha alma - digo, meus olhos são negros demais para se ver através.
Aleatório
- Por que você não escreve mais? Sinto falta das suas palavras.
- Não sei, acho que tenho medo.
- Medo de escrever?
- Sim, porque quando eu escrevo (quando eu escrevo do fundo da alma) eu não consigo mentir.
- É da verdade que você tem medo, então.
- Sim, talvez seja mesmo...
- Mas você sabe que verdade é essa?
- Não exatamente...
- Então seu medo é descobrir a verdade?
- É, pode ser isso!
- Sabe o que eu acho?
- O que?
- Que você nem sabe realmente do que está com medo. E está aterrorizada por isso!
- É verdade, eu estou aterrorizada. Mas não é por não saber...
- E por que é então?
- Por saber que no momento em que eu escrever, não poderei mais fingir que não sei.
- Não sei, acho que tenho medo.
- Medo de escrever?
- Sim, porque quando eu escrevo (quando eu escrevo do fundo da alma) eu não consigo mentir.
- É da verdade que você tem medo, então.
- Sim, talvez seja mesmo...
- Mas você sabe que verdade é essa?
- Não exatamente...
- Então seu medo é descobrir a verdade?
- É, pode ser isso!
- Sabe o que eu acho?
- O que?
- Que você nem sabe realmente do que está com medo. E está aterrorizada por isso!
- É verdade, eu estou aterrorizada. Mas não é por não saber...
- E por que é então?
- Por saber que no momento em que eu escrever, não poderei mais fingir que não sei.
Da traição
O calor do seu olhar e a inflexão terna da sua voz me envolviam em um encanto difícil de romper ou do qual fugir. Parecia ao mesmo tempo plausível e inconcebível que o encanto ambíguo, um pouco pungente e misterioso, daquela mulher pudesse me atingir. O brilho dos seus dentes contra a polpa rosada dos seus lábios naquele sorriso incerto, tímido e raro; a seriedade dos seus grandes olhos escuros, tudo para fazer um homem mergulhar de cabeça no abismo aberto sob seus pés.
Era plausível, até mesmo para mim, e ao mesmo tempo inconcebível. Porque eu não era assim. Porque eu a amava, você. Porque estávamos ligados para a vida e para a morte, e eu não podia desaparecer do seu horizonte mais do que o sol podia desaparecer do céu.
Era plausível, até mesmo para mim, e ao mesmo tempo inconcebível. Porque eu não era assim. Porque eu a amava, você. Porque estávamos ligados para a vida e para a morte, e eu não podia desaparecer do seu horizonte mais do que o sol podia desaparecer do céu.
Coma
Parece estar dormindo
Mas os olhos permanecem abertos
Espectros de um sonho que morreu
E apodrece nesse corpo deserto
Árido e seco, onde nada germina
- nem mesmo a dor
Você ainda enxerga e escuta
Mas já não muda nada ao seu redor
Um mero fantasma que transita
Sem habitar nenhuma memória
De compaixão ou rancor
O sangue aguado que te rega
É veneno que carrega em suas veias
De que vale um coração que bombeia
Quando não se ama?
Você pensa que está vivo
Mas sua alma está em coma.
Mas os olhos permanecem abertos
Espectros de um sonho que morreu
E apodrece nesse corpo deserto
Árido e seco, onde nada germina
- nem mesmo a dor
Você ainda enxerga e escuta
Mas já não muda nada ao seu redor
Um mero fantasma que transita
Sem habitar nenhuma memória
De compaixão ou rancor
O sangue aguado que te rega
É veneno que carrega em suas veias
De que vale um coração que bombeia
Quando não se ama?
Você pensa que está vivo
Mas sua alma está em coma.
Vampira
Não há verdade em teus olhos, eu sei
que tu destilas falsidade a cada instante
mas eu sorvo teu veneno alucinante, e declino
em teus braços finos
como um feto me alimento do teu ventre
me embriago com tua boca cor-de-vinho
tanto envergo meu olhar pra ti
que fico cego
pego teus cabelos em minhas mãos e tu vens
como um verme rastejando sobre mim
finda o gozo em minha língua
e tinge as unhas com meu sangue
carmim
que tu destilas falsidade a cada instante
mas eu sorvo teu veneno alucinante, e declino
em teus braços finos
como um feto me alimento do teu ventre
me embriago com tua boca cor-de-vinho
tanto envergo meu olhar pra ti
que fico cego
pego teus cabelos em minhas mãos e tu vens
como um verme rastejando sobre mim
finda o gozo em minha língua
e tinge as unhas com meu sangue
carmim
Comodismo
Você se acomoda. Desde o início você se acomoda. Você se acomodou em meus braços, tão fácil, tão bem, e depois se acomodou na minha vida, tão natural. Você se acomodou mesmo incomodado com meu jeito de rir de coisas absurdas. Você se acomodou e eu pensei que fosse porque você me amava.
Mas então você se acomodou com suas dores no joelho e com suas unhas encravadas. Você se acostumou com a minha presença constante, mas se acomodou, quando estávamos distantes. Você se acomodou com nossas brigas e deixou de se importar com minhas lágrimas. Até que você se acostumou com meus defeitos e nem sequer brigava mais.
Você se acomodou com meus longos discursos, mesmo preferindo o silêncio. E se conformou em ter sempre os mesmos problemas sem solução. Você se acomodou com a tristeza, mas continua fingindo que eu te faço feliz.
Você se acomoda tanto com tudo que eu já não sei se o que te move é amor ou indiferença. No fundo, eu não quero saber. Por isso eu me acomodo. Porque eu não consigo me acomodar com sua ausência.
Você se acomoda tanto com tudo que eu já não sei se o que te move é amor ou indiferença. No fundo, eu não quero saber. Por isso eu me acomodo. Porque eu não consigo me acomodar com sua ausência.
Post Mortem
Eu tentei (juro que eu tentei) me segurar na borda daquele abismo, mas a vertigem que se apoderou de mim não era medo de cair – era vontade de pular. Fechei os olhos e, por um instante, pude ver nitidamente uma forte claridade, até que o mundo encarvoou-se de trevas e silêncio.
Eu sentia a escuridão pegajosa mover-se em torno de mim como tentáculos invisíveis. Tentei gritar, mas ouvi meu eco morrer alguns passos adiante, engolido pelas sombras. Nada parecia poder viver naquele lugar, e nesse momento me ocorreu que eu também já não vivia.
De pés descalços, caminhei pisando em pedras – que mais tarde descobri serem crânios. Elas se espatifavam como frutas podres, dilacerando-me a carne, fazendo verter meu sangue negro e profano, fedorento como cadáver em decomposição.
Tropecei nas raízes de uma árvore caída e seus galhos secos envolveram meus pés, arrastando-me pelo chão de ossos amolados. Desesperado, cravei as unhas na terra, mas elas não suportaram a força do rebento e estouraram todas em uma dor lancinante.
Eu chorava como uma criança que acorda assustada com um pesadelo, exceto porque eu jamais acordaria (quisera ao menos poder dormir). Meu corpo inteiro latejava e tremia com um frio causticante, fazendo meus dentes chacoalharem dentro da minha boca, até que eu os vomitei um a um sobre minhas mãos e pés ensanguentados.
Depois de um tempo, não sei dizer quanto, o mundo como ele é não passava de uma lembrança distante. Tudo que existia era dor e sofrimento, em um cemitério de almas atormentadas, onde nem mesmo à morte eu podia recorrer – como tantas vezes fiz. Eu estava morto. Mas se a morte não era o fim, aonde mais eu poderia ir?
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